Enfrentando a impossibilidade – e a necessidade – de contar os idiomas do mundo
Como pesquisador da diversidade linguística há uma década e meia, recentemente me juntei a uma equipe para trabalhar em uma tarefa que até mesmo alguns linguistas consideram “em última instância inalcançável”: ajudar a catalogar e contar os idiomas complexos e em constante mudança do mundo. Faço parte de uma equipe internacional de especialistas reunidos pela UNESCO no intuito de criar um Atlas Mundial de Línguas. Espera-se que esse catálogo possa gerar estimativas atualizadas sobre o número de idiomas ativos bem como informações sobre o modo como eles estão sendo usados.
Geralmente, quando apresento minha pesquisa, um dos meus truques consiste em começar com uma estimativa aproximada do número de idiomas naturais que estão atualmente em uso: entre 7.000 e 8.000. Meu objetivo é comunicar que existem muitos idiomas e, portanto, uma diversidade incrível nas formas de pensar, raciocinar e sentir dos seres humanos. Mas apontar um número mais preciso de idiomas abre a porta para todos os tipos de problemas.
Por exemplo, a República Centro-Africana é o lar de cerca de 70 idiomas. Grande parte das pessoas falantes desses idiomas vivem nas profundezas de florestas tropicais sem estradas, em vilarejos de muito difícil acesso para representantes do governo e pesquisadores. É difícil imaginar o quanto demandaria em termos de recursos para conseguir formar uma imagem linguística precisa apenas desse país.
Obviamente, nosso projeto está longe de ser o primeiro a tentar categorizar e quantificar idiomas. Muitos grupos e indivíduos já fizeram isso no passado e continuam a fazê-lo.
Essa missão me colocou em uma jornada de aprendizado sobre a história e a arte de contar idiomas. Embora eu esperasse ler uma sequência entediante de estimativas, eu encontrei uma narrativa fascinante envolvendo missionários cristãos, idealistas do período pós-guerra, um agente colonialista do ópio e muito mais. Também passei a apreciar ainda mais a tarefa potencialmente impossível de contar idiomas.
POR QUE CONTAR OS IDIOMAS?
A cada ano, cerca de três idiomas deixam de ter usuários ativos. Isso leva a consequências negativas para as comunidades, incluindo a perda de um conhecimento cultural único. Como disse o linguista Kenneth Hale, perder um idioma é “como jogar uma bomba no Louvre”.
Pesquisadores, instituições e governos precisam documentar o número de idiomas para poder desenvolver e avaliar políticas visando a melhorar a vitalidade dos idiomas em declínio. Também precisam traduzir informações para garantir que o maior número possível de pessoas possa ter acesso a uma variedade de recursos. Portanto, uma estimativa precisa do número de idiomas e suas localizações regionais é necessária.
Adicionalmente, cientistas usam estatísticas linguísticas para entender por que os idiomas e as culturas estão distribuídos da forma como estão no planeta. Seus resultados revelaram vários paralelos intrigantes entre a diversidade biológica e a diversidade cultural. Por exemplo, os idiomas parecem seguir a regra de Rapoport, a qual, na ecologia, determina que a área geográfica das plantas e dos animais aumenta à medida que se afasta da linha do equador. Da mesma forma, quanto mais distante da linha do equador se encontra um idioma, maior será a área de seus usuários.
O estudo da diversidade linguística também ajuda a entender melhor como os idiomas influenciam a cognição. Assim, essa pesquisa mostra que a compreensão mais ampla de domínios como a ciência, a medicina e a tecnologia encontra-se limitada e tendenciosa devido ao monopólio praticamente exclusivo de um número pequeno de idiomas que dominam estes campos de conhecimento.
OS DESAFIOS DA CONTAGEM DE IDIOMAS
Para poder definir um sistema de comunicação como um idioma distinto –em oposição a um dialeto ou à variedade de uma língua– ele precisa ser suficientemente ininteligível em relação a outros. Às vezes, os limites entre os idiomas são bem definidos; em outras ocasiões, são mais ambíguos.
Por exemplo, há diferenças no sotaque, no vocabulário, e na gramática do inglês tal como é falado em Chicago, na Cidade de Belize, em Glasgow, em Mumbai, em Nairobi, e na Cidade do Cabo. No entanto, essas formas de falar são geralmente rotuladas como variedades do inglês porque, supostamente, seus falantes conseguem entender uns aos outros. Mas há ressalvas. Tem momentos em que duas pessoas falantes nativas de inglês de diferentes países podem ter dificuldades para se entender.
Invoca-se frequentemente a regra segundo a qual, caso pessoas falantes de dois sistemas de comunicação diferentes conseguirem entender 70 porcento ou mais do que a outra está falando, elas estão falando duas variedades de um idioma e não dois idiomas diferentes. Mas até isso pode ficar complicado.
Veja, por exemplo, a Copa do Mundo masculina da FIFA de 1986 no México, que teve o gol mais incrível da história do futebol (ou “pelada” dependendo da variedade de português que você fala). Alguns canais de TV brasileiros dublaram os jogos em português. Outros deixaram as entrevistas com os jogadores e os comunicados oficiais em sua versão original, o espanhol.
Pesquisadores estimaram que pessoas falantes do português do Brasil entendem cerca de 60 porcento do espanhol. Contudo, esse número foi baseado na compreensão de textos por estudantes universitários a partir de uma quantidade insuficiente de gêneros literários e de variedades do espanhol. É fácil imaginar cenários em que essa porcentagem cairia para quase zero – por exemplo, se uma pessoa falante do português não especialista ouvisse alguém ler uma apresentação científica sobre a Teoria das Cordas em espanhol.
Em contraste, a comunicação sobre os esportes tende a ser estereotipada (“tivemos um bom jogo”; “o outro time foi mais forte”) e apoiada por referencias visuais que transmitem o sentido. Pode-se supor, então, que muitas pessoas brasileiras assistindo a Copa do Mundo de 1986 em espanhol entenderam muito mais do que 70 porcento da transmissão. Este exemplo ilustra as complicações que existem ao usar apenas um número para estimar a inteligibilidade.
Questões políticas também entram em jogo quando se pede às comunidades ou aos países que registrem seus idiomas. A depender da vontade política, dois idiomas altamente inteligíveis entre si podem ser tratados como entidades separadas de um lado e do outro de fronteiras nacionais e estaduais. Os exemplos mais conhecidos incluem o indonésio e o malaio padrão, o dari e o perso, bem como o bósnio-croata-montenegrino-sérvio, o qual perdeu seus hífens após a Guerra dos Bálcãs na década de 1990, dando origem a dois ou quatro idiomas, dependendo a quem você perguntar.
Por outro lado, algumas formas do chinês falado, incluindo o mandarim e o yue, não possuem inteligibilidade entre si. No entanto, elas são geralmente consideradas variantes ou dialetos do chinês em vez de idiomas diferentes, devido ao senso relativamente forte de identidade etnolinguística presente na China, ao patrimônio cultural compartilhado, e a um sistema de escrita amplamente compreensível.
Também pode ser delicado perguntar a indivíduos sobre as distinções entre idiomas por conta dos entendimentos diferentes em relação ao que é considerado um idioma, quem deveria falar qual idioma e outras considerações éticas. Há muitos registros de casos em que pessoas negaram falar um idioma, e depois o falaram fluentemente com seus familiares sob o olhar perplexo de uma pessoa linguista.
Casos contrários também acontecem. Na Polinésia Francesa, Pierrot Faraire é reconhecido como a principal referencia viva do idioma rapa, o qual teve seu lugar ocupado pelo taitiano e o francês. Mas segundo os relatos de pessoas mais velhas bem como provas documentais, seu rapa seria, em sua maior parte, uma nova invenção.
Essas são apenas descrições superficiais de alguns dos problemas associados com a tarefa de contar idiomas. Mas a mensagem fica clara: delimitar línguas não consiste apenas em um exercício científico ou técnico, e há muito espaço para opiniões e enviesamento. Portanto, afirmar saber com precisão quantos idiomas existem pode ser entendido como parte de uma iniciativa de estudo extraordinária – ou loucura. Ou ambas. Mas isso não impediu ninguém de continuar tentando.
A CONTAGEM DE IDIOMAS PARA COLONIALISTAS E COMPANHIAS DE RELÓGIOS
Deixando de lado as poucas tentativas mais antigas documentadas de descrição das línguas mundiais, as primeiras iniciativas de contagem e de mapeamento de idiomas que fizeram um uso intensivo de recursos foram encomendadas no final do século XIX e começo do século XX com o objetivo explícito de auxiliar as administrações coloniais.
Talvez o exemplo mais conhecido seja o Levantamento Linguístico da Índia, o qual envolveu uma rede colossal de funcionários do governo em todo o país. O principal idealizador da pesquisa, Sir George Abraham Grierson, era um dos agentes de ópio do Império Britânico na Índia. (Ele também era um linguista, embora esse seja um fato muito menos surpreendente sobre ele.) Sua expectativa era que essa iniciativa levasse três anos. Na verdade, a pesquisa levou cerca de 30 anos, e não foi isenta de falhas.
O primeiro esforço em grande escala com o objetivo de padronizar os nomes dos idiomas do mundo data da era pós-Segunda Guerra Mundial. Em 1947, a Organização Internacional para Padronização foi fundada a partir da intenção de criar normas aplicáveis em nível mundial em áreas como a engenharia, a medição, entre outras. Essa tarefa tinha se tornado particularmente urgente frente à iminente americanização e aos esforços para regenerar o comércio internacional. A natureza democrática e igualitária dessa organização foi consagrada através do seu curto nome: ISO. Embora possa parecer um acrônimo, na verdade este nome combina as primeiras letras da instituição, lembrando a palavra grega para “igual”, isos.
Em 1967, a organização finalizou a norma técnica padrão ISO 639. Seu objetivo era tornar mais simples a comunicação entre especialistas internacionais em ciência e tecnologia. Portanto, ela estava menos preocupada em celebrar a diversidade linguística do planeta do que em criar códigos convenientes compostos de uma ou duas letras para os idiomas (como E para inglês, F para francês e Zu para zulu) que pudessem ser usados, por exemplo, em documentos de conferências. A ISO 639 apresenta a seguinte situação hipotética para justificar a utilidade dos seus códigos de idiomas:
Uma fábrica de relógios bem conhecida inclui em seu catálogo de cinco idiomas uma introdução em apenas um dos cinco idiomas, de acordo com a solicitação do destinatário. Essas introduções intercambiáveis são mantidas juntas por fitas que são marcadas apenas por uma das cinco letras E, F, D, I ou S.
A escolha de “uma fábrica bem conhecida de relógios” como exemplo principal parece bem menos estranha quando se leva em conta que essas reuniões da ISO ocorriam em Genebra, na Suíça.
A ISO criou códigos para 183 idiomas. Talvez as inclusões mais impressionantes consistam nas línguas construídas o esperanto, o volapük, o interlingua e o ido. Naquela época, quando a gigantesca perda humana causada pela Segunda Guerra Mundial ainda estava fresca na mente das pessoas, a ideia de que os seres humanos precisavam compartilhar um mesmo idioma fazia mais sentido do que faz hoje, levando em consideração o quanto o inglês lutou (às vezes literalmente) para chegar ao topo como a língua franca do mundo.
Dando um salto no tempo até 2007, a ISO 639-3 documentou mais de 7.500 idiomas, incluindo idiomas antigos e idiomas que não possuem usuários atualmente. Para compilar esse catálogo, a ISO uniu forças com uma iniciativa independente criada para nomear e contar os idiomas do mundo: Ethnologue, a qual tem sua própria história peculiar.
PREGAR O EVANGELHO EM TODOS OS IDIOMAS
A história de Ethnologue começa com um missionário: William Cameron Townsend.
Em 1918, Townsend pregava o evangelho nas terras altas da Guatemala. A instituição que ele servia havia esboçado um plano de conversão em espanhol. Mas os povos indígenas da região falavam muitos outros idiomas. Townsend se afeiçoou ao povo Kaqchikel, aprendeu seu idioma e, 14 anos depois, terminou de escrever a primeira tradução do Novo Testamento para o kaqchikel.
Ao longo deste processo, ele fundou o Acampamento Wycliffe, um campo nomeado em homenagem a uma das primeiras pessoas a terem traduzido a Bíblia em inglês. O acampamento oferecia aos jovens missionários um curso intensivo sobre a documentação linguística. Pouco tempo depois, Townsend abandonou a maior parte da bagagem histórica e dos símbolos religiosos, reformulando os esforços da organização à luz de causas científicas e humanitárias.
Essa estratégia permitiu que Townsend e aqueles que seguiram seus passos obtivessem acesso a lugares e idiomas que teriam sido impenetráveis para os missionários cristãos tradicionais. Como parte desse esforço, ele rebatizou o Acampamento Wycliffe como Summer Institute of Linguistics [Instituto Linguístico de Verão], um nome desprovido de conotações cristãs. Agora conhecida como SIL International, essa instituição administra Ethnologue.
Nas últimas duas décadas, Ethnologue tem sido a principal referência de fato para os processos de nomear e contar idiomas, determinar o número de pessoas falantes de cada idioma e, de forma controversa, avaliar seu grau de vitalidade. Seus responsáveis não hesitam em afirmar isso. Em sua 25ª versão on-line, Ethnologue declara ser “o recurso mais confiável sobre os idiomas do mundo, com a confiança de acadêmicos e empresas da Fortune 500”. Longe de mim afirmar possuir qualquer qualificação em relação a estratégias de publicidade, mas presumo que seja interessante saber que você está utilizando o mesmo conjunto de conhecimentos linguísticos que as empresas John Deere e Foot Locker.
Linguistas também se apoiam nos recursos da SIL para suas pesquisas, como, por exemplo, para encontrar contatos confiáveis nas comunidades que estão estudando ou para obter softwares relevantes para seus trabalhos de campo. Contudo, a principal missão da SIL Internacional continua sendo a tradução da Bíblia. Este objetivo pode às vezes encontrar-se em oposição com a preservação da diversidade linguística. A divulgação da Bíblia prioriza a leitura em relação às tradições da oralidade que são essenciais para algumas comunidades. E a tradução da Bíblia para uma variedade linguística específica dentro de uma região pode lhe conferir um prestígio maior, em detrimento de outras línguas.
O FUTURO DA CONTAGEM DE IDIOMAS
No momento, há poucas alternativas reais a Ethnologue. Talvez a mais conhecida seja Glottolog, uma base de dados online que é gratuita graças ao apoio do departamento de evolução cultural e linguística do Instituto Max Planck de Antropologia Evolucionária na Alemanha. Ela afirma ser um “catalogo abrangente” e promete que “qualquer variedade com a qual uma pessoa linguista trabalhe deve um dia ter sua própria entrada”.
Esse “um dia” é importante. Glottolog é administrado por algumas pessoas linguistas que fazem a curadoria do site por paixão. Esse feito merece elogios, mas não constitui a solução mais sustentável. As decisões de Glottolog sobre o que é considerado como idioma e como idiomas estão relacionados entre si resultam da “melhor estimativa dos editores de Glottolog”. Não existe nenhum registro público mostrando a forma como cada decisão foi tomada, mas o site reconhece que mais de 250 pessoas “forneceram informações de confirmação e/ou esclarecimento”
Não está claro o que aconteceria se as pessoas editoras de Glottolog fossem impossibilitadas de dar continuidade a esse trabalho. Esta preocupação é constante devido à escassez do financiamento para projetos desse tipo.
Levando em consideração todos os desafios de ordem técnica, conceitual, ética, e financeira envolvidos na criação dos catálogos de idiomas, não é de se surpreender que algumas pessoas acreditem que essa tarefa seja, em última instância, desnecessária. Em uma conferência de 2013, os linguistas Stephen Morey e Mark Post argumentaram que as tentativas de padronizar a diversidade linguística eram “destinadas ao fracasso” devido à natureza dinâmica dos idiomas: as línguas simplesmente não se comportam da forma que desejaríamos que se comportassem.
Não sou totalmente insensível ao sentimento expressado por eles. Mas me pergunto como se encontraria nosso conhecimento coletivo sobre a diversidade linguística sem esses catálogos limitados e falhos.
Como saberíamos que a população da Nova Guinea, com mais de 12 milhões de habitantes, é falante de mais de 800 idiomas, enquanto os habitantes da Europa, contabilizando 750 milhões de pessoas, somente falam aproximadamente 200? De que outra forma teríamos reconstruído a história cultural de linhagens humanas inteiras e fragmentos de vocabulários antigos? E como poderíamos rastrear e potencialmente reverter a perda linguística mundial, a não ser continuando a contar os idiomas, mesmo que não se comportem da forma que desejamos?