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Essay / Human Rights

Quando um aplicativo de mensagens se torna prova de terrorismo

A partir de 2016, o governo turco acusou de terrorismo qualquer pessoa que tivesse o aplicativo de mensagens ByLock. Um antropólogo analisa os riscos desse tipo de prova digital.
Um policial vestido de preto, usando um chapéu estilo beisebol e balaclava, com uma metralhadora pendurada no peito, está diante de um prédio de concreto cinza.

Em 2019,um policial vigia um tribunal turco durante o julgamento de um funcionário do consulado dos EUA suspeito de colaborar com o religioso Fethullah Gülen que reside nos EUA.

Ozan Kose/AFP/Getty Images

Verão de 2017. Ahmet, um estudante universitário de 22 anos, está sendo julgado em um tribunal criminal turco. [1] Este nome foi alterado para proteger a privacidade desta pessoa. Ele é acusado de estar associado à Organização Terrorista Fethullahista (FETO) ou Fetullahçı Terör Örgütü (FETÖ) em turco. Esse é o nome que o governo turco usa para designar a rede islâmica liderada pelo religioso Fethullah Gülen, que vive nos EUA.

Nenhuma testemunha ou prova física vincula Ahmet à rede Gülen. A base para sua acusação é que seu celular se conectou 317 vezes ao servidor do ByLock, um aplicativo de mensagens criptografadas para smartphones. Na visão dos promotores, o ByLock serve exclusivamente à rede Gülen. Eles equiparam qualquer dado relacionado ao aplicativo a uma conspiração terrorista global.

Ahmet afirma que seu telefone se conectou ao ByLock sem seu conhecimento. E seus registros telefônicos confirmam que ele não usou o aplicativo para enviar nenhuma mensagem.

O tribunal condenou Ahmet a seis anos e três meses de prisão.

Seu caso não foi único. Entre 2016 e 2021, o Estado turco investigou cerca de 1.800.000 pessoas de diversas origens políticas sob acusações de terrorismo. A maioria das provas incriminatórias envolvia registros de sinais de comunicação, publicações em redes sociais e dados digitais armazenados em telefones ou dispositivos de memória. Centenas de milhares dessas pessoas foram a julgamento. Outras perderam seus empregos, foram rejeitadas por suas comunidades ou morreram por suicídio.

Sou um antropólogo que, ao longo de três anos de pesquisa, observou mais de 700 audiências sobre terrorismo e entrevistou dezenas de profissionais forenses digitais, advogados, réus, juízes e promotores públicos. Em muitos julgamentos, aqueles que ocuparam os bancos dos réus não eram dissidentes, mas pessoas que em geral apoiavam o Estado turco: ex-militares, policiais ou indivíduos conservadores e piedosos.

Alguns meios de comunicação internacionais retrataram essa repressão como táticas típicas de um governo autoritário. A coalizão nacionalista-islamista do presidente Recep Tayyip Erdoğan de fato oprimiu e silenciou os dissidentes por meios legais e não legais.

À medida que os profissionais do direito tratam os metadados digitais como prova irrefutável, o escopo dos julgamentos de terrorismo aumentou descontroladamente.

Mas essa não é a história completa: esses indivíduos foram criminalizados por uma confluência de narrativas criadas pelo Estado sobre a disseminação do terrorismo e um sistema judicial que atribui um peso imenso aos dados digitais. Como os profissionais da área jurídica tratam os metadados digitais como provas irrefutáveis, o escopo dos julgamentos de terrorismo aumentou de forma incontrolável—oferecendo uma lição às nações do mundo todo sobre os riscos das provas digitais nos sistemas de justiça criminal.

UM APLICATIVO ILEGAL

Quando o Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdoğan chegou ao poder em 2002, a rede Gülen já controlava vários meios de comunicação, escolas, bancos e empresas. Durante a década seguinte do governo do AKP, a rede Gülen teve sua época de ouro. O governo turco incentivou os membros da rede Gülen a ocupar cargos importantes no judiciário, na polícia, no exército e em outras setores da burocracia do Estado.

Mas um escândalo de corrupção em 2013 transformou os conflitos secretos entre o AKP e os gülenistas em uma guerra aberta. Antigos aliados tornaram-se inimigos declarados. O governo de Erdoğan redefiniu a rede Gülen, primeiro como uma estrutura estatal paralela e depois como a Organização Terrorista Fethullahista. O governo também demitiu e processou figuras proeminentes supostamente leais a Gülen.

Em 15 de julho de 2016, um grupo das forças armadas turcas lançou um golpe fracassado, que o governo de Erdoğan atribuiu à rede Gülen e a seu líder Fethullah Gülen. Após a tentativa de golpe, as operações antiterrorismo começaram a ter como alvo pessoas comuns que estavam associadas às instituições da rede em algum aspecto de suas vidas. A nova narrativa do Estado transformou todos os seguidores de Gülen em um grupo de fanáticos que escondem suas identidades reais e não reconhecem nenhuma moral em sua busca incessante pelo poder.

No entanto, descobrir os membros de um grupo supostamente tão esquivo, mas tão difundido, seria quase impossível usando táticas de investigação tradicionais. Assim, o governo recorreu a diferentes tipos de provas digitais—incluindo um aplicativo de mensagens criptografadas chamado ByLock: Secure Chat & Talk.

Um desenho a lápis em preto e branco mostra o interior de um tribunal turco, incluindo funcionários do tribunal sentados em mesas e telas de TV penduradas no teto para exibir testemunhos virtuais.

Um esboço do autor retrata o julgamento de um professor de ensino médio que compareceu virtualmente por causa da possível exposição à COVID-19. Devido em parte ao suposto uso de Bylock, o suspeito foi condenado a nove anos de prisão.

Onur Arslan

Mehmet Yılmaz, vice-presidente do Conselho Supremo de Juízes e Promotores, apresentou o ByLock como a “prova mais contundente” da filiação à FETO. Disponibilizado no Google Play, na loja de aplicativos da Apple e em outras plataformas on-line entre 2014 e março de 2016, o aplicativo disponível ao público foi baixado mais de 500.000 vezes por usuários de todo o mundo. Porém, com base em algumas mensagens decifradas e na localização de endereços IP, a Organização Nacional de Inteligência da Turquia argumentou que os gülenistas projetaram e usaram o aplicativo de forma exclusiva. [2] Os endereços de protocolo da Internet (IP) são números exclusivos atribuídos a cada dispositivo conectado à Internet. Por exemplo, enquanto escrevia esta nota de rodapé, meu endereço IP era 168.150.104.237.

Examinadores forenses independentes que entrevistei reconhecem que a maioria dos usuários é de fato simpatizante de Gülen e que os criadores provavelmente estavam conectados à rede. Mas, para eles, a posse do ByLock não prova a filiação à FETO.

A “prova” tem dois problemas principais: os serviços de inteligência e a acusação definiram qualquer pessoa que se conectasse ou baixasse o aplicativo como um usuário do ByLock, mesmo que não enviasse nenhuma mensagem. Em segundo lugar, a maioria das mensagens eram conversas cotidianas, como o compartilhamento de receitas culinárias ou louvores religiosos.

DUVIDANDO DAS PROVAS DIGITAIS

Examinadores forenses digitais estimam que a avaliação do ByLock pela Organização de Inteligência inicialmente tornou cerca de 215.000 pessoas suspeitas de terrorismo.

Os juízes começaram a condenar qualquer pessoa cujo telefone estivesse conectado ao servidor ByLock, independentemente de as mensagens terem sido enviadas. As pessoas que entrevistei me disseram que somente dados digitais poderiam revelar as conspirações de um grupo religioso desviante que se esconde por meio de mentiras e disfarces. Eles também presumiram que os dados digitais extraídos de bancos de dados de vigilância e do servidor ByLock poderiam identificar indivíduos na rede da Internet.

Há motivos para duvidar que essa lógica possa fazer justiça. Em 2017, examinadores forenses digitais independentes e advogados descobriram milhares de telefones conectados ao servidor ByLock sem o conhecimento de seus usuários. Essa revelação forçou a promotoria a retirar as acusações de 11.480 usuários suspeitos do ByLock e a reconhecer a existência de “erros” nas investigações digitais.

Ouça o podcast do autor para saber mais: “Os problemas das provas digitais em julgamentos de terrorismo.”

Contestar as provas do ByLock, no entanto, teve um custo, como explicaram meus interlocutores: agentes da mídia pró-governo organizaram campanhas de difamação contra especialistas independentes por meio de plataformas de mídia social e agências de notícias. Esses especialistas receberam ameaças de morte por meio de ligações telefônicas não identificadas. Um defensor público foi demitido de seu emprego.

Apesar das intensas pressões, alguns especialistas continuaram a enfatizar o absurdo de vincular todos os rastros do ByLock ao terrorismo. Eles afirmaram que a infraestrutura de Internet do país torna impossível identificar conexões individuais com o ByLock. O provedor de Internet de Ahmet, por exemplo, distribuiu o mesmo endereço IP para milhares de clientes. [3] Se endereços IP dinâmicos forem usados, eles podem mudar. Além disso, os usuários podem substituir seus endereços IP reais por meio de redes privadas virtuais (VPNs), que mascaram a localização, identidade e atividade de um usuário. Portanto, os registros de conexão associados ao telefone de Ahmet podem ter pertencido a outra pessoa.

Além disso, mesmo que muitas pessoas tenham usado o aplicativo e simpatizado com a rede Gülen, isso não significa que sejam terroristas. Milhões de pessoas, inclusive atores governamentais proeminentes, tinham vínculos com Gülen por motivos religiosos, emprego ou influência política.

Os juízes que entrevistei estão cientes dessas questões. Mesmo assim, eles utilizam os “registros ByLock” como prova. “Em questões de terrorismo, às vezes sacrificamos os direitos humanos”, disse-me um juiz.

INOCENTE e DESTRUÍDO

Considerando a parceria anterior dos gülenistas com o aparato estatal turco, não é de surpreender que poucos líderes da oposição tenham dado destaque a acusações duvidosas de terrorismo em seus discursos públicos. Os partidos de oposição, como o Partido Republicano do Povo, concordam que o conflito mortal entre dois movimentos islâmicos está arruinando o país. Eles não querem se associar ao governo de Erdoğan, aos gülenistas ou a qualquer suposto associado da rede Gülen.

Mas os atores proeminentes da rede constituem uma pequena proporção dos que estão sendo julgados. Em vez disso, esses julgamentos incriminam predominantemente estudantes, professores, médicos e outros cidadãos comuns provavelmente inocentes.

Um esboço a lápis com cores marrons e avermelhadas retrata pessoas com olhares desanimados ao entrarem em um tribunal.

Testemunhas esperam para entrar na sala do tribunal para a audiência final de um julgamento por terrorismo neste esboço feito pelo autor.

Onur Arslan

Seis meses após Ahmet ter cumprido sua pena de prisão, em setembro de 2023, a Grande Câmara do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) proferiu uma sentença que questionou todos os julgamentos do ByLock e outras investigações digitais realizadas após a tentativa de golpe. O TEDH concluiu que o Estado turco violou os direitos de um professor cujo caso se baseava principalmente no suposto uso do ByLock. Na sentença, o tribunal também destacou outros mais de 100.000 casos semelhantes.

Desde a decisão, Bylock raramente tem sido usado como prova em novos julgamentos.

Mas para aqueles que já foram processados, como Ahmet, muitos não têm certeza de como enfrentar a incerteza jurídica que os assombra há anos. Alguns já cumpriram sua pena de prisão. Outros continuam presos. E muitos outros—que foram absolvidos ou não foram a julgamento—perderam seus empregos e sua dignidade.

O caso ByLock exemplifica como as autoridades estatais podem arruinar a vida das pessoas sob a bandeira do contraterrorismo – e normalizar essa prática. Essa violência se manifesta de várias formas e em vários lugares: vigilância excessiva do governo nos EUA, bombardeio israelense de áreas civis em Gaza ou, como na Turquia, a produção e a manipulação de provas forenses. Devemos denunciar e rejeitar os sistemas políticos que arbitrariamente tornam nossas vidas precárias e descartáveis

A black-and-white photograph of a man with glasses and light facial hair.

Onur Arslan é doutorando em antropologia na Universidade da Califórnia, em Davis. Ele trabalha nas interseções dos estudos de ciência e tecnologia, antropologia visual, direito e estudos sociais sobre expertise. Ele se formou na Universidade Bilgi com um mestrado em filosofia e pensamento social e na Universidade de Istambul com um bacharelado em ciência política e relações internacionais. No âmbito da sua pesquisa de doutorado, ele está investigando como as tecnologias digitais remodelam a produção de conhecimentos legais em julgamentos de terrorismo. Ao focar no contraterrorismo turco, ele examina as implicações culturais, políticas e tecnocientíficas das práticas de produção de evidências. Sua pesquisa de campo é apoiada pela National Science Foundation, Social Science Research Council e American Research Institute na Turquia. Siga-o na rede social X @OnurArslannnnnn.

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