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O que está por trás da evolução dos retratos de Neandertal

Desde 1800, as representações de Neandertal evoluíram não apenas com as mudanças na ciência, mas também devido às percepções sociais. Uma arqueóloga explica a importância das imagens dos nossos primos evolucionários.
Uma pessoa de cabelos grisalhos curtos, vestindo uma camisa azul, segura uma câmera preta na altura do rosto e aponta para uma figura que parece uma pessoa peluda e sem roupa, com uma mão no colo e a outra no queixo.

Em 2004, um fotógrafo tira fotos de uma figura de neandertal pensativo em exposição no Museu Pré-Histórico em Halle, na Alemanha.

Sebastian Willnow/DDP/AFP/Getty Images

OS PRIMEIROS RETRATOS DOS NEANDERTAIS

Em 1888, algumas décadas após a descoberta do primeiro fóssil com o nome científico de Homo neanderthalensis, o antropólogo e anatomista Hermann Schaaffhausen produziu um retrato de como a aparência desse neandertal poderia ter sido em vida.

Encontrado no Vale de Neander, na Alemanha, o fóssil de fato era composto apenas da parte superior de um crânio—uma cúpula em forma de lágrima com grandes sobrancelhas—sem os ossos faciais abaixo. Mas Schaafhausen preencheu os espaços em branco e esboçou o rosto de um neandertal de perfil: um sujeito peludo e robusto com uma mandíbula protuberante.

Dezoito anos antes, o cientista Louis Figuier publicou uma ilustração que retratava o indivíduo do Vale de Neander como um europeu biologicamente moderno, vestido com roupas de pele. A partir do mesmo fóssil, dois contemporâneos desenharam imagens diametralmente opostas.

Por que isso aconteceu?

Enquanto darwinista social, Schaaffhasuen acreditava que as diversas raças representavam diferentes estágios em uma progressão linear da evolução humana. Para ele, os neandertais pertenciam a um estágio primitivo de habitantes de cavernas. Com aparência de gorila e incivilizado, o neandertal de Schaaffhausen implorava por melhorias físicas e morais. Figuier, um criacionista, via os neandertais como humanos como nós—manifestados por um Deus bíblico no sexto dia da criação. Ele imaginava os neandertais como biologicamente modernos, mas—como bebês—precisando aprender os caminhos da civilização.

Um gráfico em preto e branco mostra várias pessoas vestindo tangas de pele, balançando porretes contra um urso agressivo. Dois mamutes são visíveis à distância.

A imagem “O Homem na Época do Grande Urso e do Mamute”, publicada no livro Homem Primitivo, de Louis Figuier, em 1870, retrata os neandertais como modernos, exceto por suas ferramentas de pedra e peles.

Louis Figuier/Chapman and Hall/Project Gutenberg

Um esboço em sépia e branco mostra o perfil lateral de uma pessoa com sobrancelha saliente, mandíbula grande, cabelo desgrenhado, bigode e barba.

Em sua monografia Der Neanderthaler Fund, Hermann Schaaffhausen reconstruiu um rosto de Neandertal semelhante ao de um símio com base no primeiro fóssil do Vale de Neander e em achados posteriores da Spy Cave, na Bélgica.

Hermann Schaaffhausen/PressBooks

Desde esse primeiro conjunto de ilustrações, muita tinta foi derramada sobre a interpretação e a representação dos neandertais. Essas imagens devem ser situadas em seus contextos históricos. Ao analisar as reconstituições dos neandertais—e as ilustrações científicas em geral—é importante esclarecer como as visões sociais e políticas influenciam a apresentação dos dados.

Às vezes, as interpretações dizem mais sobre os autores do que sobre seus temas.

PRIMOS ESTRANHOS

Os neandertais, nossos primos evolucionários, divergiram de nossa linhagem há cerca de 600.000 anos. Eles percorreram a Eurásia por centenas de milhares de anos até serem extintos há cerca de 40.000 anos. Em muitos aspectos, eles se assemelhavam aos nossos ancestrais do Paleolítico: ambos usavam ferramentas de pedra, cooperavam e cuidavam de sua espécie. Mas as distinções se destacam. Mais corpulentos e dotados de sobrancelhas enormes, os neandertais sobreviveram a algumas das condições mais frias da Eurásia, onde nenhum Homo sapiens se aventurou durante esses períodos de frio.

A aparência dos neandertais sempre teve importância. Mais do que meras obras de arte, as imagens de neandertais representam uma referência do que significa ser humano.

Um gráfico em preto e branco mostra uma figura peluda e sem roupas ao lado de uma rocha imponente com um porrete em uma mão e uma pedra na outra. Um crânio está no chão em frente a ele.

Para a ilustração de 1909 “O Homem de La Chapelle-aux-Saints”, o artista František Kupka baseou-se na interpretação científica de Marcellin Boule dos restos mortais de Neanderthal encontrados na França.

Charles Phelps Cushing/ClassicStock/Getty Images

Uma estátua de pedra cinza representa o busto de uma pessoa com cabelos na altura dos ombros, bigode e barba em um fundo preto. Abaixo dela, um bloco de texto diz: “Pt. V. O homem de Neandertal de La Chapelle-aux-Saints, habitante da região de Dordogne, na França central, na época da Mousteria. Antiguidade estimada entre 40.000 e 25.000 anos. Após a restauração modelada por J.H. McGregor. Para conhecer as proporções corporais dessa raça de caçadores, compare o frontispício, Pl. I."

Usando o mesmo material fóssil, curadores e paleoantropólogos encomendaram este busto, “O Homem de Neandertal de La Chapelle-aux-Saints”, para o Museu Americano de História Natural em 1915.

Wellcome Images/Wikimedia Commons

Antes do século XX, apenas ossos esparsos de neandertais haviam sido descobertos. O primeiro esqueleto quase completo foi encontrado no sítio francês de La Chapelle-aux-Saints em 1908. O paleoantropólogo francês Marcellin Boule analisou os fósseis e colocou os neandertais mais próximos dos macacos e símios do que dos humanos. Uma imagem, baseada em suas conclusões, mostrava uma figura peluda e curvada, semelhante a um símio, segurando um porrete e uma pedra.

Por outro lado, o anatomista britânico Arthur Keith achava que os neandertais pertenciam à linhagem europeia. Esse não era um gesto de inclusão: Keith, um defensor do racismo científico, acreditava que a humanidade tinha sua origem na Europa. Ele trabalhou com um artista para produzir uma ilustração de um Neandertal que, assim como a de Figuier, parecia um homem europeu. A figura estava sentada perto de uma fogueira fazendo ferramentas de pedra, usando roupas de pele e um colar.

O homem símio de Boule encontrou um beco sem saída evolutivo. O neandertal quase europeu de Keith entrou para a história da humanidade.

Apesar das diferentes posições sobre o lugar dos neandertais na evolução humana, ambas as perspectivas foram influenciadas pelo imperialismo e pela popularidade da “ciência racial.” De acordo com essa visão, agora desmentida e denunciada, as raças eram vistas como grupos biologicamente distintos que podiam ser organizados em uma hierarquia. Os neandertais se tornaram uma ferramenta para promover essa ideologia.

Em 1911, o artista anglo-francês Amédéé Forestier criou esse neandertal de aparência europeia também com base em interpretações dos fósseis de La Chapelle-aux-Saints.

Os horrores da Segunda Guerra Mundial mudaram as perspectivas sobre raça e imperialismo nas esferas públicas e acadêmicas do mundo todo. O racismo científico recuou diante da crítica generalizada à noção de que certas populações vivas poderiam ser consideradas biológica, intelectual e culturalmente inferiores.

Nessa era pós-guerra, William Straus Jr. e Alexander Cave reexaminaram a análise original de Boule sobre o neandertal de La Chapelle-aux-Saints. Em 1957, eles detalharam as imprecisões da interpretação inicial. O trabalho levou-os a acreditar que se um neandertal com a barba feita, de banho tomado e bem vestido andasse no metrô de Nova York, “é duvidoso que ele atraísse mais atenção do que alguns de seus outros habitantes”.

Com o impulso em direção a uma perspectiva mais unificada da humanidade, os neandertais foram acolhidos no grupo.

FLORES E MULHERES

Uma grande mudança nas percepções sobre o neandertal ocorreu em 1971, quando o arqueólogo Ralph Solecki produziu um relatório sobre escavações na caverna Shanidar, no Iraque. Seu trabalho sugeriu que os neandertais cuidavam de parentes doentes e enterravam seus mortos com flores com base na presença de pólen. Ele fez um comentário famoso sobre os neandertais, dizendo que “embora o corpo fosse arcaico, o espírito era moderno”. Embora pesquisas mais recentes tenham mostrado que o pólen provavelmente vinha de roedores escavadores, o relatório de Solecki teve um impacto profundo sobre as percepções dos neandertais na época.

Mais tarde naquele ano, um livro de não-ficção ilustrado para o público deu vida ao povo das flores de Neandertal. No livro, os neandertais realizavam festas e funerais. Esse neandertal atualizado, mais parecido com o ser humano, obteve o apoio dos cientistas e a crescente simpatia do público.

Da mesma forma, uma ilustração da National Geographic de 1985 mostrava os neandertais se comunicando e cooperando enquanto abatiam um íbex e fabricavam ferramentas. De forma notável, as mulheres são o foco da imagem. Elas esquartejam, coletam e conversam. Os homens de Neandertal, por outro lado, ficam em segundo plano.

A representação de mulheres neandertais como personagens centrais desafiou as representações das mulheres paleolíticas—geralmente mostradas cuidando de bebês na periferia, enquanto os homens caçam e fabricam ferramentas de pedra. Refletindo o Movimento de Libertação das Mulheres, esse quadrinho expressou as críticas feministas às abordagens de pesquisa centradas nos homens.

SUPREMACISTAS NEANDERTAIS

Ainda hoje, as forças sociais e políticas distorcem as interpretações dos neandertais.

As representações contemporâneas dos neandertais em museus e na cultura pop tendem a ter pele clara em decorrência de pesquisas genéticas realizadas entre o início e meados dos anos 2000. No entanto, estudos posteriores que examinaram mais DNA neandertal concluíram que pelo menos alguns indivíduos tinham pele mais escura, olhos castanhos e cabelos ruivos escuros.

Até que ponto as pessoas cientistas conseguem deduzir o tom de pele a partir dos genomas? Outra pesquisa abarcou no seu estudo tanto os neandertais quanto pessoas vivas bem conhecidas, como Henry Louis Gates Jr., professor da Universidade de Harvard e apresentador do programa Finding Your Roots [Encontrar suas raízes]. Usando marcadores genéticos, as pessoas autoras conseguiram estimar a pigmentação da pele mais clara ou mais escura com cerca de 60% de precisão para as pessoas vivas—pouco mais do que a chance aleatória de jogar uma moeda.

Os artistas e irmãos holandeses Adrie e Alfons Kennis mostram como criam modelos de Neandertais e dos primeiros Homo sapiens para o Museu de História Natural de Londres em 2014.

Ainda assim, a imagem do neandertal “branco” persistiu. Os supremacistas brancos se apegaram à ideia de que a posse de genes de neandertal representa um marcador da pureza europeia—apesar do fato de que as populações do mundo inteiro possuem traços de DNA de neandertal, incluindo, ao contrário dos primeiros relatos, alguns genomas africanos.

Desde sua descoberta, os neandertais têm ocupado um espaço precário como nossos primos estranhos. As imagens de neandertais, feitas por pesquisadores ou artistas, não transmitem apenas hipóteses científicas. Elas também expressam movimentos sociais e noções de humanidade.

Portanto, ao olhar para uma imagem de neandertal ou qualquer ilustração científica, leve em consideração o que mais ela pode representar: a ciência entrelaçada com a sociopolítica.

A person with shoulder-length black hair smiles at the camera.

Cindy Hsin-yee Huang (ela) é uma arqueóloga paleolítica com foco em ferramentas de pedra e evolução cultural. Ela é doutoranda na Escola de Evolução Humana e Mudança Social e vinculada ao Instituto de Origens Humanas da Universidade Estadual do Arizona. Sua tese, apoiada pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá, estuda o surgimento e a dispersão de microlitos, ou pequenas ferramentas de pedra, na Eurásia durante o Pleistoceno tardio. Essa pesquisa tenta entender os padrões de inovação e difusão cultural em larga escala durante o passado antigo e como eles impactaram, facilitaram e refletiram a evolução humana, a migração e as interações sociais. Siga-a no X, antigo Twitter, em @CHYHuang.

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