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Essay / Unearthed

Escavar passados culinários – com a ajuda do cocô de lhama

Uma arqueóloga da alimentação pesquisa a comida cotidiana e os tempos de escassez no antigo povo Moche do Peru através da descoberta notável de milhares de “feijões” de lhama.
Uma imagem mostra a cabeça e o tronco de uma lhama marrom clara em um chão bege e arenoso.

Desde tempos antigos, as sociedades andinas criam lhamas para consumo de carne e como animais de carga.

Katherine L. Chiou

UM DIA NA VIDA DE UMA ARQUEÓLOGA DA ALIMENTAÇÃO

Em um dia sufocante no deserto peruano, meus assistentes de campo e eu estávamos lutando contra alucinações induzidas pelo calor ao escavarmos os vestígios de uma casa antiga de 1.500 anos. O sol forte deixava tudo em um tom de bronzeado indistinguível. Enquanto escavávamos o canto de um pequeno cômodo quadrado, algo chamou minha atenção.

“Cocô de lhama!” exclamei.

No início, apenas alguns dos grânulos redondos fizeram sua aparição. Mas, à medida que cavamos mais fundo, descobrimos centenas e, por fim, milhares de “feijões,” como são comumente chamados. Também encontramos sementes, tubérculos e ossos de animais.

Esse era um tesouro de informações sobre refeições antigas—o material dos sonhos de arqueólogos. Eu quase chorei.

Como arqueóloga da alimentação que trabalha na América do Sul andina, sou fascinada pela banalidade de hábitos cotidianos como os relacionados à comida. Em comparação com a construção de grandes templos ou práticas que envolvem sacrifícios rituais, as práticas alimentares antigas podem não capturar a imaginação das pessoas da mesma forma. Mas os vestígios das práticas humanas mais mundanas podem dizer muito aos pesquisadores sobre vidas passadas.

Ouça aqui para saber mais sobre a pesquisa da alimentação de Chiou “O Povo das Pimentas.”

O cocô de lhama, nesse caso, está associado ao povo Moche, um grupo de pessoas que viveu no atual Peru aproximadamente de 100 a 850 da Era Comum. Com base nessa descoberta notável (na minha humilde opinião), sabemos agora que o povo Moche coletava o esterco de suas lhamas e alpacas domesticadas. As pessoas o misturavam com água e restos de comida para criar um adubo rico em nitrogênio, potássio e fósforo.

Cinco pessoas estão espalhadas em uma colina rochosa. A maioria está olhando para baixo e cavando a terra.

A autora e sua equipe escavando uma antiga habitação em uma encosta no Cerro Chepén, onde o povo Moche vivia no norte do Peru.

Katherine L. Chiou

Um pequeno aglomerado marrom arredondado fica sobre um fundo branco, acima de uma pequena linha preta rotulada como “4 milímetros”.

Milhares de esterco de lhama seco, chamado de “feijões”, foram preservados na caixa de compostagem da casa.

Katherine L. Chiou

Por que a descoberta de uma simples caixa de compostagem é importante para as pessoas arqueólogas? Esses feijões de lhama, em aparência insignificantes, fornecem informações sobre como o povo Moche sobreviveu em períodos de seca, conflito e colapso político.

Muitas sociedades ao longo dos tempos, inclusive a nossa, enfrentaram ou estão enfrentando tensões e catástrofes semelhantes. Entender como as sociedades do passado, como a sociedade Moche, lidaram com essas turbulências sociais, com ou sem sucesso, pode oferecer lições valiosas para os dias de hoje.

NA IMINÊNCIA DO FIM DOS TEMPOS: CONFLITOS E DESASTRES

Os Moche do antigo Peru são considerados uma “sociedade complexa” que antecedeu a mais famosa civilização Inca em cerca de 1.000 anos. Os grupos Moche criaram uma arte impressionante e e uma arquitetura monumental, incluindo uma ampla rede de canais de irrigação com a capacidade de transformar faixas de deserto em terras agrícolas férteis.

As evidências arqueológicas sugerem, no entanto, que durante seus anos de declínio nos séculos VII e VIII, as comunidades Moche enfrentaram turbulências políticas e sociais internas.

Os dados que coletei sobre as refeições consumidas pela elite na sociedade Moche sugerem que as pessoas ricas “ficaram mais ricas” enquanto as outras passavam por insegurança. As demonstrações públicas de riqueza ostensiva, a exemplo de enterros elaborados e de festas rituais realizadas pela classe superior, provavelmente evidenciaram as fissuras entre as pessoas que tinham e as que não tinham acesso a recursos.

Uma figura de cerâmica marrom com o formato de uma lhama fica sobre um fundo sombreado cinza escuro a cinza claro.

O povo Moche criou vasos de cerâmica com bicos de estribo únicos. Este, elaborado por volta de 500 E.C., mostra uma lhama carregando uma bolsa.

Heritage Images/Getty Images

Para piorar a situação, as pessoas tinham que lidar com outros fatores de estresse social, incluindo possíveis invasões estrangeiras oriundas do planalto andino e/ou de outros grupos locais. Embora os arqueólogos não tenham encontrado evidências concretas da existência de uma guerra aberta nesse período, a proliferação de assentamentos defensáveis sugere que o povo Moche estava preocupado com sua segurança. É provável que as pessoas tenham temido ataques às suas comunidades para obter suprimentos, prisioneiros ou terras.

Além das tensões de classe e a possível ameaça de violência, o povo Moche teve que enfrentar uma série de episódios de seca e de inundações do século VI ao século VII. Esses desastres ambientais provavelmente ameaçaram sua sobrevivência no deserto –uma zona onde a água já é rara. Conflitos relativos ao acesso e à distribuição limitados da água provavelmente aumentaram a competição e causaram o desgaste das relações entre as comunidades.

Todos esses fatores combinados acabaram criando fissuras no tecido social, as quais levaram ao fim do povo Moche como uma entidade política dominante.

A ESCAVAÇÃO DE CERRO CHEPÉN

No Vale do Jequetepeque, onde realizei minha pesquisa, os sinais do desmoronamento do poder e do controle centralizados dos Moche estão presentes na paisagem. Perto do fim de seu domínio político, o povo Moche começou a construir cidades fortificadas no interior, em colinas próximas a terras produtivas com acesso à água. Uma dessas comunidades, onde minha equipe descobriu os feijões de lhama, é o sítio de Cerro Chepén.

Como outros assentamentos criados naquela época, Cerro Chepén foi construído às pressas e ocupado por um curto período de tempo com o objetivo de proteger estrategicamente uma parte do vale. No espaço denominado pelos arqueólogos de Comunidade do Topo da Colina, a elite vivia em grandes edifícios protegidos por um alto muro defensivo com pontos de entrada limitados – semelhante aos condomínios fechados de hoje. Suas dietas provavelmente incluíam milho, várias frutas e uma grande variedade de proteína animal, especialmente alimentos com proveniência marinha.

Enquanto isso, no que chamamos de Comunidade da Ladeira da Colina, as pessoas da classe popular moravam em casas construídas em terraços e plataformas. Aquelas que ocupavam os níveis sociais mais baixos estavam muito mais expostas a ameaças e estavam situadas mais próximas da água e das terras agrícolas. Suas dietas eram mais limitadas em comparação com as das pessoas que moravam no Topo da Colina.

Um gráfico retangular grande é dividido em quatro partes diferentes, denominadas A, B, C e D. A seção A tem uma massa bege ao lado de uma massa azul com um triângulo vermelho denominado Cerro Chepén. A seção B é um mapa do terreno de um bege mais claro. A seção C também é um mapa do terreno, mas maior e sobre um fundo branco com uma legenda que rotula “Muro de perímetro”, “Muros de contorno”, “Terraços de habitação” e “A ‘Casa Moche’”. A seção D mostra uma seção transversal da Casa Moche, com os rótulos “rochas”, “leito rochoso”, “composto”, “banco”, “terra queimada”, “colapso de parede”, “buraco de poste” e “direção da rampa/acesso”.

(A) Um mapa mostra a localização do Cerro Chepén no Vale do Jequetepeque, na costa norte do Peru; (B) a localização da Comunidade da Ladeira da Colina; e (C) um close-up da Comunidade da Ladeira da Colina e da casa Moche escavada. (D) Este desenho dá uma visão panorâmica do que os arqueólogos encontraram escavando a casa Moche.

Katherine L. Chiou

Um gráfico feito por computador mostra várias estruturas com pilares e rochas menores marrons cercadas por um terreno rochoso cinza.

Uma reconstrução em 3D mostra a aparência provável da casa Moche há cerca de 1.200 anos.

Katherine L. Chiou

Como todas as pessoas que vivem em tempos de incerteza, os moradores e as moradoras da casa da Ladeira da Colina escavada por minha equipe adotaram estratégias para lidar com um suprimento instável de alimentos. Por um lado, parece que eles e elas ficavam mais perto de casa do que as gerações anteriores. Pesquisadores da arqueologia que analisaram períodos anteriores descobriram que era provável que as pessoas da classe popular Moche fossem em busca de alimentos em zonas ecológicas distantes e diversas dos Andes. Em comparação, a dieta dos moradores da Ladeira da Colina do Cerro Chepén indica que se tornaram mais avessos ao risco do que no passado, optando por fontes de alimentos mais localizadas e confiáveis.

Minha análise da caixa de compostagem mostra que as pessoas da classe popular da Ladeira da Colina dependiam de um grupo central de alimentos básicos cultivados nas proximidades, a exemplo do milho, do algarrobo, da mandioca e da abóbora. Elas tinham porquinhos-da-índia em suas casas e cuidavam de lhamas do lado de fora, usando-os como suas principais fontes de proteína animal. Elas se alimentavam com caramujos terrestres encontrados em cactos que cresciam na colina e faziam a colheita de plantas silvestres e daninhas, como o amaranto, nas áreas agrícolas ao redor.

Além de se ater a ingredientes simples e mais facilmente acessíveis, as pessoas residentes também guardavam os restos de suas refeições e os misturavam com feijões de lhama dos currais próximos para fazer sua pilha de compostagem. Para ajudar no processo de decomposição, elas adicionavam água e reviravam a mistura regularmente para garantir uma aeração adequada. Isso produzia um fertilizante rico que podia ser usado em seus jardins e campos para aumentar a produtividade agrícola.

Em algum momento, toda a comunidade de Cerro Chepén deixou suas casas, mas não se sabe ao certo o motivo. É possível que a área tenha sido atacada, mas pode ser que as pessoas simplesmente tenham se mudado. Elas também podem ter sido expulsas ou forçadas a se mudar para altitudes mais elevadas devido à seca.

O que sabemos é que, quando a casa Moche da Ladeira da Colina foi abandonada, uma carga de adubo estava no meio do seu processo de decomposição. Sem a devida atenção, o processo de decomposição e de reciclagem foi interrompido, preservando assim o conteúdo.

Mais de 1000 anos depois, pessoas arqueólogas como eu ficam maravilhadas com a engenhosidade e a capacidade de adaptação daqueles que vieram antes de nós.

POR QUE A ARQUEOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO É IMPORTANTE

Então, qual é o aprendizado mais importante dessa pesquisa?

A compreensão das disparidades no acesso aos alimentos nas comunidades Moche é particularmente importante ao demonstrar como as desigualdades de classe podem ter contribuído para a queda política da sociedade.

Ao mesmo tempo, a investigação dos padrões alimentares nos ajuda a entender como as pessoas sobreviveram e resistiram apesar de tais desafios. Minha pesquisa sugere que os alimentos básicos à base de carne e vegetais podem ter sido um símbolo de identidade compartilhada para as classes mais populares do povo Moche. Em tempos difíceis, esses alimentos familiares podem ter unido as pessoas e as ajudado a persistir.

Um ensopado amarelo com ervilhas verdes e um pequeno pedaço de milho branco está em uma tigela branca e azul sobre uma toalha de mesa quadriculada branca e azul, com uma tigela de arroz, dois pãezinhos e um copo de água ao fundo.

O locro de zapallo, um ensopado farto com ingredientes básicos consumidos no Peru atualmente, normalmente inclui uma mistura de moranga ou outra variedade de abóbora, ervilhas, milho, batatas, pimentas e outros temperos.

HannLeonPhoto/Getty Images

Atualmente, em todo o mundo, as pessoas continuam a adotar alimentos simples e nostálgicos —às vezes chamados de “refeições de luta”—para nutrir um senso de pertencimento a uma comunidade. Considere pratos adorados feitos com restos de carne e miúdos menos desejáveis, como o scrapple, o salami e a rabada, ou sopas e ensopados que fazem render os ingredientes, tal como o menudo, o cassoulet e a acquacotta. Pratos ricos em amido com origens humildes feitos a partir de alimentos de base também trazem conforto para muitos comedores: pense nos pratos como o colcannon, a polenta, o congee ou o arroz e feijão vermelho.

Ao analisar as sociedades do passado, como a do povo Moche, podemos entender melhor como os seres humanos recorrem aos alimentos para lidar com fatores de estresse, como a desigualdade e as mudanças ambientais. Hoje, quando olhamos para alguns dos mais humildes dos nossos pratos favoritos, devemos considerar as histórias que eles contam sobre a resiliência das gerações passadas.

Em outras palavras, não negligencie nem os esconderijos de cocô de lhama velho nem o lixo! Podemos aprender muito com eles.

Katherine L. Chiou é uma arqueóloga, antropóloga e paleoetnobotânica cujos interesses de pesquisa incluem os modos de alimentação no passado e no presente, a arqueologia andina, a arqueologia doméstica, a domesticação de plantas, a soberania alimentar, a agrobiodiversidade, a sustentabilidade, os SIG e a visualização de dados, além da condução responsável de pesquisas. Ela recebeu seu mestrado e doutorado da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e atualmente é professora adjunta de antropologia na Universidade do Alabama, onde supervisiona o Laborátorio de Povos e Plantas Antigas. Atualmente, Chiou está trabalhando em um projeto, financiado pela National Science Foundation, para estudar e promover culturas éticas no campo da arqueologia.

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