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Essay / Field Notes

A digitalização de lápides pode salvar a história?

Uma antropóloga está digitalizando lápides em Burial Hill, um cemitério histórico localizado em Plymouth no estado de Massachusetts que guarda os restos mortais de alguns dos primeiros peregrinos. Documentar esses registros únicos e torná-los acessíveis também levanta questões necessárias sobre a preservação das histórias coloniais.
Um grupo de pessoas caminha por um estreito caminho de concreto cercado por gramados e lápides.

A terra onde fica o cemitério Burial Hill foi o lar do povo Wampanoag e dos passageiros do Mayflower.

Michael Swensen/Boston Globe/Getty Images

A DIGITALIZAÇÃO DE LÁPIDES

Um dia, no outono passado, quando Kerri Klein estava fotografando lápides no Cemitério Burial Hill em Plymouth, no estado de Massachusetts, uma mãe cega e sua criança se aproximaram dela. Elas perguntaram a Klein se ela poderia mostrar-lhes o monumento ao naufrágio do General Arnold, cuja maior parte da tripulação de mais de 100 pessoas foi morta em uma tempestade em 1778.

Enquanto Klein as conduzia ao memorial, ela se deu conta do quão estreitos são os caminhos para uma pessoa que anda com uma bengala. Quando chegaram ao obelisco, a criança leu o epitáfio em voz alta enquanto a mãe apalpava a lápide e seguia as palavras com os dedos.

Nesse momento, Klein viu uma oportunidade para a tecnologia ajudar. “Se a gente pudesse imprimir um modelo em 3D dessas lápides para usar na divulgação para o público, seria uma experiência tátil que realmente ajudaria no aprendizado por meio do toque”, ela me disse. Essa é apenas uma das ideias de Klein para tornar a arqueologia do cemitério mais acessível a todos. Afinal, diz ela, “por que fazemos o que fazemos se outras pessoas não têm acesso a isso?”

Klein, uma estudante de doutorado em antropologia aplicada na Universidade do Sul da Flórida, é a fundadora do Projeto de Digitalização 3D de Burial Hill. Sua missão é fotografar cada uma das mais de 2.300 lápides de Burial Hill, um sítio que faz parte do Registro Nacional de Lugares Históricos. Em seguida, ela pretende juntar as fotografias 2D para criar modelos digitais altamente detalhados e impressões 3D—um processo chamado de fotogrametria. A essência do seu projeto consiste em compartilhar a arqueologia tanto com especialistas quanto com o público em geral, e assim proteger o patrimônio cultural único do cemitério.

Deitada de lado, uma pessoa com rabo de cavalo loiro usa camisa azul e calça jeans preta e aponta uma câmera para uma lápide.

A antropóloga Kerri Klein fotografa uma lápide em Burial Hill.

Anya Gruber

Sou doutoranda em antropologia e estou trabalhando no cemitério Burial Hill como parte do Projeto de Estudo Arqueológico Plymouth Colony, e conheço Kerri Klein desde 2015. Desde que fiquei sabendo do projeto de Klein no ano passado, me senti muito envolvida e fascinada por seu trabalho. Conversei com ela sobre a importância da digitalização de lápides, a crescente popularidade da fotogrametria na era da COVID-19 e os dilemas éticos de documentar um local tão diretamente ligado ao colonialismo.

A HISTÓRIA CONTURBADA DE BURIAL HILL

Por cerca de 12.000 anos, o local hoje chamado de Burial Hill foi o lar do povo Wampanoag e de seus ancestrais. Os Wampanoag construíram o vilarejo de Patuxet, com suas casas abobadadas (“wetu”), plantações de milho e oficinas para fabricar ferramentas de pedra. Entre 1616 e 1619, uma praga trazida pelos europeus dizimou as comunidades wampanoag em toda a região.

Em 1620, os passageiros do navio Mayflower, que havia partido da Inglaterra para o atual estado de Massachusetts, estabeleceram a Colônia de Plymouth em Patuxet. Eles construíram casas, um forte e um muro de paliçada.

A colina Burial Hill (originalmente “Old Fort Hill”[Colina do Velho Forte]) foi transformada em cemitério nas últimas décadas do século XVII, depois que os colonos abandonaram a vila original e partiram para outras colônias recém-estabelecidas. Muitas figuras históricas notáveis foram enterradas nesse cemitério. Entre elas estão o governador da colônia de Plymouth, William Bradford, a poetisa ativista Mercy Otis Warren e, possivelmente, Tisquantum, o último Wampanoag vivo de Patuxet que ensinou os passageiros do Mayflower a cultivar.

Essa história de longa duração inspira e perturba Klein. Embora ela admita amar todos os cemitérios históricos, ela tem uma queda por esse em particular, pois cresceu em Plymouth e se lembra de ter visitado o Burial Hill quando criança. Durante seu programa de doutorado, Klein trabalhou com Antoinette Jackson, uma antropóloga da Universidade do Sul da Flórida e a fundadora da Rede de Cemitérios Negros, que protege cemitérios históricos negros por meio da pesquisa e da defesa de seus interesses. O trabalho de Jackson motivou Klein a preservar o cemitério que ela adorava quando era uma jovem estudante, através da digitalização de lápides.

“A vista do topo do Burial Hill é incrível, e não consigo imaginar como ela teria sido há 300 anos ou 3.000 anos”, diz Klein. “Então, estou tentando capturar um pouco disso e compartilhar com outras pessoas.”

Uma fotografia em preto e branco mostra uma praça cheia de pessoas usando camisas ou vestidos de colarinho e coberturas brancas na cabeça.

Pessoas vestidas como peregrinos, representando as famílias que embarcaram no Mayflower, seguem por Plymouth até o Burial Hill em 1947.

Charles F. McCormick/Boston Globe/Getty Images

TER ACESSO À HISTÓRIA GRAÇAS À ARQUEOLOGIA DIGITAL

Desde o início do Projeto de Digitalização 3D de Burial Hill em 2021, Klein documentou mais de 75 lápides com a ajuda de voluntários da organização Amigos de Burial Hill e de sua irmã, Menden. Ela também organizou e realizou oficinas para ensinar os voluntários a fazer fotogrametria.

“Isso faz parte da acessibilidade”, diz Klein. “Mais pessoas podem contribuir para isso. Não é necessário ter uma câmera de US$ 2.000. Você pode simplesmente usar seu telefone que está com você de qualquer jeito.”

Para Klein, a arqueologia digital é uma ferramenta vital para o presente e o futuro da arqueologia pública. A disponibilização on-line de sítios e patrimônios de importância, a exemplo do seu trabalho de digitalização de lápides, torna-os acessíveis a qualquer pessoa com acesso à Internet, esteja ela na proximidade de Burial Hill ou do outro lado do mundo.

“Especialmente [desde] a COVID, todo mundo realmente depende de ferramentas digitais para tornar suas coleções acessíveis”, diz ela. “Esse é o próximo passo na arqueologia. Todo mundo vai saber como fazer fotogrametria.”

Klein também espera que seu projeto ajude na preservação e na conservação. Quando as lápides são danificadas ou desgastadas, é impossível repará-las ou substituí-las sem um registro detalhado. Com fotografias 3D digitalizadas, diz Klein, “a cidade e os guardiões do cemitério podem rastrear coisas como o crescimento orgânico em lápides individuais ou danos. Ou, se uma árvore cair neste inverno e arrancar 20 lápides, se tivermos esses modelos, eles poderão criar uma lápide com 100% de precisão”.

Klein ajudou a criar essa imagem em 3D que retrata a lápide de Hannah Bartlett, que morreu em 1710.

USF Institute for Digital Exploration via Sketchfab

Klein afirma que um método semelhante foi usado recentemente em um cemitério histórico na Filadélfia. Os pesquisadores fizeram escaneamentos a laser das lápides em um terreno pertencendo à Marinha dos Estados Unidos e criaram um banco de dados que pode ser consultado para futuros reparos.

Mas os danos ambientais não são os únicos desafios que Klein enfrenta. Quanto mais ela trabalha nesse projeto, diz ela, mais se depara com problemas éticos que não foram adequadamente abordados em projetos arqueológicos semelhantes.

A ARQUEOLOGIA DIGITAL E A DESCOLONIZAÇÃO

O campo da arqueologia está cada vez mais confrontando as suas raízes colonialistas. Acadêmicos e acadêmicas estão se perguntando quais formas a descolonização deve tomar—ou se ela é mesmo possível. Klein tem plena consciência disso ao trabalhar para preservar a história de Burial Hill.

A maioria das pessoas enterradas no cemitério são os primeiros colonos ingleses e os descendentes brancos dos puritanos que embarcaram no Mayflower e mais tarde foram chamados de peregrinos. Esses são alguns dos personagens mais emblemáticos da tradição estadunidense. De fato, eles inspiraram parcialmente um feriado muito querido: Thanksgiving, ou o Dia de Ação de Graças.

De acordo com a história do Dia de Ação de Graças, tal como foi reimaginada na década de 1860 para representar um modelo de unidade em meio à Guerra Civil dos Estados Unidos, os prósperos peregrinos convidaram alguns de seus amigos indígenas para celebrar uma colheita abundante com um banquete. Embora tenha havido, de fato, um banquete compartilhado em 1621, essa versão atenua bastante a violência que os colonizadores viriam a cometer contra os povos indígenas da região. Ela apaga o fato de que as comunidades indígenas norte-americanas já realizavam celebrações de ação de graças e ensinaram aos peregrinos como sobreviver. Hoje, um Dia Nacional de Luto é realizado em Plymouth no Dia de Ação de Graças para lembrar o genocídio e protestar contra a opressão contínua dos povos indígenas.

“Cresci em Plymouth e não me ensinaram sobre o Dia de Ação de Graças. Eu me mudei para o estado de Tennessee antes de saber o que realmente era o Dia de Ação de Graças”, explica Klein. Ajudar as pessoas a entender essa história e a valorizar as perspectivas das pessoas indígenas e de outros povos marginalizados consiste em uma das principais forças que guia a jornada de Klein pela arqueologia pública.

Três pessoas vestidas com capas pretas e chapéus com abas estão de pé com as mãos cruzadas atrás de uma pessoa de cabelos grisalhos sem chapéu usando uma capa semelhante

Um membro da Plymouth Mayflower Society lê uma oração em Burial Hill durante a marcha Pilgrim’s Progress [Progresso do Peregrino] no Dia de Ação de Graças em 2001.

Kevin Wisniewski/MediaNews Group/Boston Herald/Getty Images

Uma fotografia em close-up mostra uma grande pedra com uma placa que diz: “Dia Nacional de Luto. Desde 1970, pessoas indígenas se reúnem ao meio-dia na Cole's Hill, em Plymouth, para comemorar o Dia Nacional de Luto no feriado de Ação de Graças dos EUA. Muitas pessoas indígenas não comemoram a chegada dos peregrinos e de outros colonizadores europeus. Para eles, o Dia de Ação de Graças é um lembrete do genocídio de milhões de pessoas, do roubo de suas terras e do ataque implacável à sua cultura. Os participantes do Dia Nacional de Luto homenageiam os ancestrais indígenas e as lutas dos povos indígenas para sobreviver até hoje. É um dia de lembrança e conexão espiritual, bem como um protesto contra o racismo e a opressão que as Américas indígenas continuam sofrendo. Erguido pela cidade de Plymouth em nome dos Indígenas Unidos da Nova Inglaterra.”

Desde 1970, os povos indígenas e seus aliados declaram o Dia de Ação de Graças como Dia Nacional de Luto e se reúnem para reconhecer o genocídio e a opressão contínua dos povos indígenas.

Melissa Doroquez/Wikimedia Commons

“Uma parte essencial desse projeto consiste em perguntar: Como posso descolonizar esse projeto que é quase 100% feito de colonizadores?”, diz ela. Embora Klein compreensivelmente não tenha uma solução clara para essa grande questão, ela permeia seus métodos de pesquisa.

Em um dos primeiros dias que passou na colina com sua câmera, Klein fotografou dois túmulos menos documentados que, segundo ela, exigiam mais cuidado. Um deles era a lápide de Charles B. Allen, um veterano da Guerra Civil que lutou como parte da Fifth Massachusetts Colored Volunteer Cavalry, o único regimento de cavalaria inteiramente negro de Massachusetts. A outra era o túmulo de Nancy Williams, uma mulher negra que trabalhava como empregada doméstica e faleceu aos 25 anos de idade.

Embora pouco tenha sido registrado sobre essas pessoas, Klein quer preservar o máximo possível de suas histórias. “Não consigo imaginar como era a vida dessas pessoas e, então, pelo menos, ao poder registrar suas lápides, a memória delas continua viva e podemos continuar a cuidar de suas lápides”, diz ela.

“Há uma citação que diz que a gente não é esquecido até que alguém não diga mais nosso nome”, afirma Klein. Por meio de sua dedicação à digitalização de lápides—os milhares de nomes e histórias de Burial Hill—Klein está garantindo que essas vidas não sejam esquecidas.

Anya Gruber é doutoranda em antropologia na Universidade do Texas, em Austin, com especialização em paleoetnobotânica. Ela já trabalhou no estado de Novo México e atualmente trabalha na costa de Massachusetts. Gruber escreve sobre uma série de tópicos, incluindo dieta antiga, plantas medicinais, práticas de luto e doenças infecciosas. Siga-a no Instagram @anyagruber.

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